Comícios de amor sobre o Carnaval do ano que vem
- Maria Júlia Nunes
- 5 de jul. de 2022
- 14 min de leitura
Esta crônica foi escrita na ocasião da finalização da disciplina Vozes da cultura - Pier Paolo Pasolini - 100 anos de nascimento, ministrada pelos professores Nilton Gamba Jr e Solange Jobim, no segundo semestre de 2021 no Programa de Pós-Graduação em Design da PUC-Rio.

Wolnei, Paulo e Nonato e eu - velhos amigos por alguns instantes
No novembro de 2021 em que escrevo, o Rio de Janeiro vive o que parece ser um prenúncio de verão pós-pandêmico. Com aproximadamente 70% da população vacinada com duas doses ou dose única no Estado, a capital entrou no penúltimo mês do ano sob resolução que indica a não obrigatoriedade de uso de máscara em áreas abertas, abertura de casas de show, bares e boates com ocupação de metade da capacidade máxima e liberação de competições esportivas. As saídas de casa, que nos últimos vinte meses estavam mais ou menos restritas ao essencial (no largo bastante subjetivo do que "essencial" pode significar pra sujeitos confinados há mais de ano), certamente já não são as mesmas: pra quem é de rua, a rua está chamando.
Dezenas de eventos ao ar livre todos os dias da semana com oferta dobrada nos finais de semana. Jogo de futebol. Cinema. Museu. Praia. Teatro. Festival de dança. Show de música. Roda de samba. Tem tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, que arriscaria dizer que a ansiedade de ficar confinada sem perspectiva de retorno foi praticamente substituída pela ansiedade de decidir para onde ir (e depois de tanto tempo dormindo e acordando na iminência da perda de vida, não seria exagero dizer que ficou o trauma de uma possível primeira ou última vez de toda e qualquer coisa). Retomada cultural, atmosfera de euforia, reencontro de sobreviventes.
- Mas e aí, vai ter Carnaval ano que vem?
A pergunta que não quer calar é também a indagação que marca a minha experiência pessoal de retomada - e aqui assume o volante da escrita não a estudante doutorado no Programa de Pós-Graduação em Design da PUC-Rio, mas a percussionista, regente e foliã que vem, nos últimos dez anos, trabalhando na produção e realização de grupos culturais e blocos que fazem parte do Carnaval de Rua do Rio de Janeiro. A experiência construída nessa militância de festa é tema para outra prosa, mas cabe aqui elucidar que os sobreviventes conhecidos que eu tenho encontrado nas ruas me identificam não como a Maria Júlia Nunes do doutorado, mas Maju Nunes, do Carnaval. E invariavelmente me perguntam, como que numa tentativa de obtenção de informações privilegiadas, sobre a realização, ou não, do Carnaval em 2022. Mal sabem esses sobreviventes que eu, embora acompanhando os debates nas esferas institucionais, estou tão perdida e sobrevivente quanto eles.
A questão é que, no presente momento, o Carnaval de 2022 parece mais um ring onde se clincham posicionamentos e opiniões, envelopadas quase sempre de argumentos científicos - ou de intenção científica. Com a confirmação de uma nova cepa do coronavírus (a saber, a Ômicron) em pelo menos doze países, incluindo o Brasil, o que se sente no ar é uma escalada da ansiedade coletiva pela possibilidade de um novo ciclo de contaminações, hospitalizações, lockdown. Não pretendo aqui especular cenários em relação ao que será da pandemia nos próximos meses - meu posicionamento é que cabe a nós apoiar e acatar o que diz quem tem competência para tal: os pesquisadores, infectologistas, sanitaristas que estão dedicados a analisar e avaliar os futuros possíveis. Mas, certamente, o tom cheio de dedos das perguntas, com entonação como a de quem procura narcóticos no baleiro da esquina, entrega pistas de contextualização de que, em novembro de 2021, a festa popular se tornou um terreno super habitado de areia movediça.
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Faltou o “nunca”, Presidente. “Por mim não teria Carnaval nunca”. Numa busca em plataforma de pesquisa virtual, manchetes extraídas no mesmo dia e horário de pesquisa dão o tom do imbróglio: informações contraditórias, polarização, culpabilização dos blocos e escolas de samba pela escalada (em 2020 e, possivelmente, também em 2022) de casos da Covid-19. A única coisa que parece mais ou menos clara é o uso político partidário da manifestação cultural - tanto da parte do Prefeito do Rio que, mirando na reconstrução da cidade balcão de negócios, vem comunicando uma aceleração sem curva de retorno à reabertura da cidade - que teria na realização do Carnaval sua apoteose magnífica; quanto do Presidente da República que, num lampejo de ética, cidadania e responsabilidade, decidiu prezar pelas vidas que o seu governo genocida ainda não levou, mas o Carnaval pode levar.
Troca de condutor, assume aqui a Maria Júlia: é que neste vespeiro de vozes sobre um festejo anual que mobiliza discursos mais ou menos explícitos de tolerância, liberdade, falsa tolerância, repressão, sexualidade e sexualização (tal qual o amor de Pasolini) vislumbrei a possibilidade de empreender a minha própria empreitada corsária. Uma pesquisa de campo presencial com gente que sabe e gente que não sabe, pra fazer emergir a verdade profunda sobre as contradições que pairam no ar nessa véspera de carnaval ainda pandêmico. Tomando como ponto de partida Comícios de Amor, me joguei num experimento de campo corpo-a-corpo com as vozes da rua do Rio de Janeiro.
*
Um homem branco, alto, com cabelos negros, curtos mais volumosos, muito bem divididos e penteados, vestindo camisa social branca que aparece sempre em primeiro plano, envolta por um cinto que sustenta calça de alfaiataria. Uma figura casualmente sofisticada com um microfone na mão, se emaranhando no meio da gente italiana lutando contra os "monstros", ou seja, contra a ignorância, as aberrações da razão mediando diálogos entre os que sabem e os que não sabem em um diálogo simples, sóbrio e fraterno.
Comícios de Amor, de 1964, chegou para mim sessenta anos depois de seu lançamento, numa combinação de encantamento e inveja. Encantamento, porque me parece impossível não se hipnotizar com o gingado com que Pasolini atiça fogo nos mais improváveis cantos de uma Itália em busca um conjunto diverso, mas extremamente coeso de diagnósticos autênticos (como diria Lahud) sobre amor e sexualidade daquela atualidade dos primeiros anos da década de 1960. Inveja, porque depois de vinte meses de confinamento em função da pandemia, qual pesquisadora ou pesquisador em formação não teria inveja do flerte científico, corpo-a-corpo investigativo com gente desconhecida na rua?
Estudei as estruturas de pergunta de Pasolini, analisei sua linguagem corporal, escolhi roupa, tracei roteiro de campo. Identifiquei grupos sociais que poderia pôr em diálogo no meu próprio cinema-vérité na véspera de um carnaval incerto. O experimento está acontecendo, as vozes das pessoas que se disponibilizaram a falar comigo foram registradas e estão em edição para compor uma peça audiovisual. Mas acontece que no meio desse processo, a realidade da rua impôs outras verites.
*
Uma mulher morena, de altura mediana, com cabelos negros cacheados e volumosos, presos em coque bagunçado no topo da cabeça, vestindo blusa de alça em cetim verde musgo, por cima do cós de um short jeans escuro largo e comprido, brincos coloridos e chinelo de borracha marrom. Uma figura sofisticadamente desarrumada, com um celular na mão, se emaranhando no meio da gente carioca num empreendimento de "luta contra os "monstros", ou seja, contra a ignorância, as aberrações da razão, mediando diálogos entre os que sabem e os que não sabem em um diálogo simples, sóbrio e fraterno sobre discursos de criminalização do Carnaval de 2022.
Em minha primeira ida a campo, decidi ir para o Estácio. Me pareceu auspicioso começar a pesquisa neste bairro localizado no Centro do Rio de Janeiro. Berço do samba, ali foi fundada a primeira escola de samba do Rio de Janeiro. Nas imediações está a Marquês de Sapucaí, por onde passam os desfiles das escolas. Além dela, outros marcos territoriais que se relacionam com o universo do Carnaval - o edifício Balança Mais não Cai e logo mais à frente, o relógio da Central do Brasil, pontos de concentração para quem desfila; o Terreirão do Samba e seus arredores - onde se come, bebe e bebe antes e depois dos impotentes quarenta minutos de duração que o componente de ala leva pra entrar e sair enxotado aos berros pela Harmonia pra fora avenida. E ai de você se quiser ficar - como diria um querido amigo baterista - "astralizando", decantando a emoção ali no furdunço da dispersão na Apoteose: é melhor voltar para o fervo do isopor na esquina do Terreirão antes de levar uma chamada verbal com jeitinho de voadora de algum dirigente da escola.
Cheguei ao Estácio, que fora da época de Carnaval é um bairro movimentado, com casarios antigos de uso residencial de trabalhadores e grande incidência de ocupação comercial às 8h40 da manhã. Comecei a andar em busca de interlocutores. Pouca gente nas ruas, quase todos caminhando rumo ao que parecia aceleração em direção ao trabalho. Essas pessoas não vão parar para falar comigo… E eu, no lugar delas, também não pararia.
Segui caminhando na Avenida Salvador de Sá, principal via no sentido Zona Norte, em busca de algum estabelecimento em que eu pudesse me aproximar de pessoas que estivessem ali, paradas, tomando um café, com tempo a perder. Entrei na Laura de Araújo, uma rua transversal que estava movimentadíssima. A grande quantidade de lojas de autopeças, mecânicos, borracheiros e outros serviços relacionados ao conserto de automóveis faz com aquele quarteirão seja um ponto conhecido dos motoristas profissionais: taxistas, motoristas de aplicativos de transporte e vans, mototaxistas, motoboys. Segui olhando dentro e fora das lojas, tentando fazer contato visual com alguém que parecesse aberto a uma aproximação.
A rua, em razão desta proliferação de lojas de peças de automóveis e da predominância de homens neste segmento, era um ambiente masculino. Terrivelmente masculino. E eu, mulher de trinta anos, andando sozinha colo e pernas de fora, investindo em contato visual forçado pelo impedimento de demonstrar expressão em metade da face por causa do uso de máscara, tive minhas intenções investigativas distorcida por aquela aglomeração de homens consertando seus veículos.
Aqui talvez caiba fornecer ao leitor mais algumas informações sobre esta que vos escreve: sou nascida e criada na Zona Norte do Rio de Janeiro. Criança em família de classe média de migrantes mineiros e suburbanos cariocas, cresci subindo em árvore, bicho solto correndo na rua. O joelho e a canela até hoje marcados pelas quedas de uma infância com emoção. Uma adolescência boêmia, ônibus pra ir e voltar das noitadas porque, com o dinheiro que tinha, precisava escolher pela entrada da gafieira ou o táxi de volta pra casa. Eventuais cochilos, acordada pelo trocador do turno da madrugada ao chegar no ponto final, lá pelos quase vinte anos o pessoal da viação já eram minhas chapas. Nos finais de período letivo, o leitor pode me encontrar escrevendo artigo sentada num bar, fones de ouvido, mouse de um lado e chopp do outro. Pessoa com razoável jogo de cintura para as situações adversas que atravessam o corpo aberto pra rua, adquirida pelas boas histórias pra contar - dessas que a gente, com distanciamento, ri e agradece à entidade protetora que, ao contrário de mim, não dormiu no ponto. Presentemente, eu posso me considerar uma sujeita de sorte, porque apesar de muito moça, me sinto sã, e salva, e forte. Mesmo assim, o trecho da Laura de Araújo, às 9 horas da manhã, se tornou hostil.
Considerei passar por cima dos olhares sexualizados que me esquartejavam e seguir na minha empreitada de investigação. Acionar uma energia bélica, assumir uma aspereza comunicacional e trucar o aglomerado com desconforto mútuo. Devolver os tiros com palavras cortantes bem escolhidas. Pasolini faria isso muito bem... Eu? Eu não estava preparada para performar desse jeito naquela situação. E minhas perguntas não eram tão fulminantes quanto as dele. Aula prática de como operam as engrenagens do machismo: olhei pra frente e segui minha caminhada ainda sem respostas, impotente.
Nesse momento, me passou pela cabeça que talvez fosse melhor buscar interlocutoras, mulheres, com quem eu não passaria de novo por essa situação. Mirei numa esquina do final da rua uma moça e uma senhora. A moça, sentada numa cadeira encostada em um casario. A senhora, em pé. Pareciam se conhecer e estar em diálogo, o que amenizaria o desconforto da abordagem individual - para mim e para elas. No empenho de conseguir minhas primeiras respostas, me aproximei rapidamente das duas, já me apresentando como estudante fazendo trabalho de campo, e pedindo para fazer algumas perguntas. A senhora não respondeu e esquivou. A outra mulher, timidez ou constrangimento, disse que sim. Perguntei se ela se incomodava se eu gravasse. Ela disse meio balbuciando que tudo bem. Liguei a câmera.
- Você… Tem alguma história com Carnaval?
- Tenho.
-Você… Brinca no carnaval de rua?
- Brinco.
- Desde quando?
-Desde que eu era pequenininha.
Evasiva e desviante. O que acontecia, e eu só comecei a conjecturar essa possibilidade alguns segundos depois de engajar num diálogo com a mulher, é que eu, sem perceber, estava fazendo minha primeira entrevista num ponto de venda de drogas. E a timidez da mulher, não era exatamente timidez. E eu filmando. Campo-vérité. Verdade demais, brecha de menos pra parar a entrevista: respirei fundo e acordei meus espíritos protetores, que não estavam habituados a trabalhar àquela hora da manhã.
Pouco mais de um minuto depois de começar a conversar, apareceu por trás de mim um homem. Com a chegada dele, a mulher levantou. O homem se aproximou e, fazendo gesto curto, assim, estendendo só o antebraço na altura do umbigo, entregou na mão dela uma nota de dez reais amassada, embolada num bolinho. A moça, sem me dar qualquer tipo de satisfação ou encerramento, virou as costas e saiu andando. Tudo registrado. O homem sentou em seu lugar e virou meu novo entrevistado.
- Tô fazendo uma pesquisa sobre o carnaval do ano que vem, você acha que vai ter?
- Vai ter. Tá tendo as torcida, porque não vai ter carnaval?
-E aí, como é que fica com a pandemia isso? Porque o Prefeito tá querendo fazer, mas tem gente que
-Ihhhhh… Tá filmando né?
- Tá filmando. Tá filmando.
- Já vi, já... Ah, a pandemia… Acabou já.
Nesse momento, se aproximava um outro homem, usando camisa cinza com nome de um estabelecimento de autopeças estampada do lado esquerdo do peito. Trabalhava, provavelmente, em alguma das lojas da rua. O homem se aproximou já falando com o outro homem, o da nota de dez reais. Viu que eu estava filmando e olhou pra mim, amigável. Sentou numa cadeira ao lado. Minha interação cinegrafada na boca de fumo virou um diálogo simples, sóbrio e fraterno.
- Acabou, não acabou inda não. Mas…
- Ah, pro povo já acabou, Julinho.
- Já teve pior. Teve Carnaval, hoje em dia tá tranquilo
- Vai ter carnaval…
- E vocês conhecem gente que não quer que tenha carnaval?
- Ah tipo assim, a maioria não quer, acho que vai ser tipo aquele, aquele dividido de impasse, uns quer outros não quer… vai ser assim.
- E vocês acham que
- E você, você quer o carnaval?
- Olha, querer eu quero, mas assim
- Porque você tá de máscara ainda, né...
As coisas, elas próprias, discursam: só neste momento que fui me dar conta de que nenhum deles, nem o agrupamento terrivelmente masculino, nem meus novos amigos da esquina estavam usando máscara. Totalmente focada em ter sucesso na abordagem e muito naturalizada com o uso de máscara no dia a dia, não tinha nem me dado conta que naquele contexto, a prática que pra mim representa um ato de responsabilidade coletiva era notada, e provavelmente reforçava uma distância entre nós. Eu, estudante de pós-graduação de uma universidade particular da Zona Sul do Rio de Janeiro. Eles, trabalhadores informais do comércio no Centro do Rio.
*
A experiência no Estácio gerou descarga de adrenalina tão intensa, que decidi encerrar os trabalhos da manhã para recalcular a rota. Tirar algumas horas para elaborar a experiência, colocar o vídeo gravado na nuvem e avaliar se seguia ali ou partia para o segundo contexto escolhido para a experiência de campo.
Voltei para casa, troquei de roupa. Dessa vez, pernas e colo cobertos. No meio da tarde, parti para o centro histórico, no perímetro entre a Praça XV e o Saara. A Praça XV, porque foi ali, há 15 anos atrás, que de penetra tocando um maracá de prata no bloco que hoje integro como responsável de um dos naipes de percussão, entendi a potência transformadora da festa de rua. E o Saara, porque é ali que se compra todas as coisas que fazem a magia acontecer. Localizado no Centro Histórico da capital, o Saara é um dos maiores polos comerciais a céu aberto do Estado do Rio de Janeiro. Formado por um raio de onze ruas, é considerado a meca do comércio popular com mais de 800 lojas formalizadas e um sem-fim de barracas, tendas e outras estruturas do comércio informal. Dentre elas, centenas de lojas de tecidos, materiais, aviamentos, acabamentos e mais toda sorte de insumos utilizados na confecção de carros alegóricos e fantasias, tanto do carnaval de avenida quanto do carnaval de rua.
Desci do ônibus da Avenida 1º de Março às 14h30 da tarde, em frente à Igreja de São José. Segui caminhando na avenida, e alguns passos à frente avistei uma agitação nas escadarias do Palácio Tiradentes, edifício que participa, desde a Colônia, de grande parte da história política brasileira e hoje abriga a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Muitas bandeiras do Brasil em riste, cartazes, dois carros importados pretos com filme de escurecimento nos vidros cercado por umas trinta ou quarenta pessoas. Repórteres fazendo perguntas para pessoas que, de longe e pelo ângulo como estavam posicionadas na escada rodeadas pela pequena multidão, não consegui identificar quem eram. Não precisava: as coisas, elas próprias, discursam. Qualquer brasileiro ou brasileira no ano de 2021 consegue elaborar hipóteses sobre o que se trata uma aglomeração de bandeiras nacionais em frente a um órgão legislativo. Prato cheio para uma entrevistadora em busca de argumentos apaixonados de veracidade questionável para compor seu experimento de cinema-verdade. Fui me aproximando aos poucos, margeando a aglomeração. Os cartazes, quase todos em papel pardo escritos alguns em tinta, outros em hidrocor preto "Fora Leda"; "Por menos cotas, mais educação". Quem é Leda?
Em sinapses neurais instantâneas, vasculhei meu repertório de militantes, políticas, pensadoras ou qualquer outra denominação que possa se dar às corsárias que colocam o corpo à prova (sem eufemismo ou metáfora) na arena de batalha por direitos humanos à educação num país regido por um governo fascista. Fascista e equipado por milícias em modalidade presencial, à distância, virtual e híbrida. Estamos todos - alguns mais, outros menos - em perigo.
Não identifiquei quem era a tal Leda que estava sendo atacada pelos manifestantes nacionalistas. Chegando ainda mais perto, já quase dentro daquela muvuca pouco convidativa, duas mulheres pretas no centro da roda. Roupas pretas, sociais, destas que se usam em contextos institucionais. Maquiadas, cabelos impecáveis: uma com tranças largas e longas. Outra com um black geometricamente construído. Elas vão participar de alguma sessão na Alerj... Provavelmente uma sessão importante, importante ao ponto de mobilizar aquela meia centena de manifestantes a saírem de casa numa terça-feira ensolarada e clima nada ameno a ficarem estacionados no meio de tanto cimento e asfalto. Ninguém, em sã consciência, sai de casa para ir ao centro do Rio de Janeiro no calor dos últimos dias de novembro assim, à toa... A causa tem que valer o risco de fritura.
Tirei o celular do bolso, mas tinha dúvidas se conseguiria entrevistas. O momento não era exatamente propício para uma abordagem glissando dos tópicos da educação e racismo para o carnaval - embora os três assuntos estejam intimamente relacionados. Mas certamente aquele evento renderia bons takes pra uma narração em off, e eu poderia esperar a coisa se dissipar pra interceptar algum nacionalista voltando pra casa. Liguei a câmera: captura dos cartazes, as camisas do Brasil, os repórteres com seus cinegrafistas de câmeras apoiadas nos ombros, as mulheres no centro da roda, os carros blindados.
- Querida. Oi querida.
- Oi!
Pouco mais de uns três ou quatro minutos depois de começar a filmar, apareceu por trás de mim um homem, batendo no meu ombro. Acorda a entidade protetora que chegou a minha vez: é hoje que eu vou ser agredida e ter meu celular zunido por um bolsonarista. Pelo menos eu tenho plano de saúde e os vídeos do Estácio já estão na nuvem.
- Tudo bem?
- Tudo, e você?
- Aham. É que é um filme.
- Sim, sim, estou filmando. Mas não é filme, é para um estudo acadêmico.
- Não, não. Isso é um filme. Uma série, na verdade.
Realidades entremedas, uma pegadinha da verossimilhança dos tempos vividos, em que não se sabe mais o que é e o que não é, e tudo pode ser. Nas melhores intenções de realização da minha primeira tentativa de cinema-vérité, a verdade me deu rasteira: meus monstros eram moinhos, e é impossível não tentar imaginar o que Pasolini diria do desdobramento quixotesco das primeiras horas do meu Comício.
*
Sobre uma das máximas nietzschianas que bem se adequa à minha experiência, andou circulando pelas redes sociais um meme desses contextualizados na experiência de quase-morte - física, simbólica, emocional - provocada pela pandemia, que dizia com uma imagem de um ser humano visivelmente desgastado que "aquilo que não te mata, te traumatiza". E é verdade, traumatiza mesmo. Mas neste caso, preciso concordar com o filósofo: as primeiras 15 horas de vida do meu 22 de novembro de 2021 me deixaram, como diz a prosa popular, casca grossa. Nas horas seguintes e dias consecutivos de ida para o tão sonhado corpo-a-corpo com gente desconhecida, agora sem romance e idealização nenhuma, recolhi sem ser privada de outras passagens dignas de continuação desta crônica, um conjunto diverso, mas extremamente coeso de respostas, percepções de gente que sabe e gente que não sabe sobre o que será o amanhã: comícios de amor sobre o carnaval do ano que vem.


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