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Uma Carta pro Chicão

  • Foto do escritor: Maria Júlia Nunes
    Maria Júlia Nunes
  • 5 de jul. de 2022
  • 3 min de leitura

Em memória de Chico Oliveira

1987 - 2020



Rio de Janeiro, 9 de Maio de 2020


Esse vídeo*, eu gostaria de poder mandar pro meu grande amigo nesse exato momento. Não era pra vir por aqui. Até poderia vir por aqui também. Mas era pra ser uma mensagem de whatsapp, acompanhada de um balaio de assuntos aleatórios, um check rápido sobre a pandemia, muitas piadas e tiração de sarro um do outro, do resto do mundo, um encontro marcado que ia ser adiado, pra depois a gente constatar entre risadas que eu sou uma furona... Não deu. Não deu tempo, Chicote. Você partiu muito cedo. E não conseguimos cantar Sem Fronteiras juntos.


Chuchu, acho que você ia gostar: começou lamento, mas a gente encontrou um caminho pra felicidade dando uma salseada. Você ia botar aquele seu baixo suingado, acompanhado do movimento de quadril e pescoço que só você fazia... E aí, pronto: ia aparecer um um sotaque espanhol tosco, íamos inventar umas palavras pra letra da música e perder tempo pensando no duplo sentido. Pura palhaçada, chorando de rir. Você ia cantar com aquele timbre de Compay Segundo que te ha hecho bilongo, imbatível. Íamos passar mal de rir mais ainda, porque o timbre vinha junto com umas caretas e trejeitos hilários, sem medo de ser feliz. Íamos abrir umas vozes. No final, voltaríamos a levar a sério: tocar sua música juntos, celebrar mais uma composição sua no mundo.


Eu sei exatamente como seria, e seria lindo. A Vevê estaria com a gente, cantando, dando uns passinhos pra longe de vez em quando pra dar uns traguinhos. Ou talvez não, Chicote, porque a titia largou os traguinhos - conseguimos, finalmente! Ela faria vídeos-registros, que ficariam guardados pra gente ver na posteridade, celebrar o encontro e rir ainda mais no futuro. Desses que estão sendo norte da saudade nos últimos meses...


Mais uma cervecita. Liga pro bar que entrega. Olha o céu, que maravilha! Pega o telescópio. Dança com o telescópio. Eita, não quebra o telescópio... Rali de cavalinho numa estação BRT no Recreio dos Bandeirantes. Pique bandeira na praia da Barra ao nascer do dia que ainda não tinha acabado. As dores do pique bandeira no dia seguinte... Péssima ideia. Rali dos sertões num Renault Clio 1.0: - Maju, olha o buraco, caralho! A serra. A alta. O mato. O sapo. Caraca, que loucuuuura esse sapo! A dança da piaba, e de repente já tá de manhã de novo. Abre pro improviso; abre uma cerveja; porra Chico, não dava pra fazer um especial mais simples não?! O sorriso debochado e solto... Majucita, puxa o coro e volta ao A: meu canto não tem fronteiras.


É, Chicones... Se tem uma coisa que esses últimos meses estão nos ensinando é que não tem mesmo. Seu canto não tem fronteiras. E esse momento, que a gente nem viveu, eu sei de cor porque vivemos muito. São fragmentos de memórias construídas com um grande grupo de amigos e misturadas pelo tempo, que emergem diariamente como devaneios de amor e saudade. Cada encontro na intensidade de quem sabia ter ali uma preciosidade de amizade, que tem que ser cuidada, cultivada e que nos fortalece pra ir pras lutas pessoais de cada um. Afeto expresso e reconhecido. Espaço para ser vulnerável. Coisa rara.


Hoje é dia 9 de Maio de 2020, e completam-se quatro meses do seu encantamento. Chico, sua ausência física ainda me parece absurda. É cada rasteira... Você nem imagina. Absurda, porque você se faz tão presente em sonhos, em músicas, em fotos e vídeos, em casas de show, assuntos que certamente discutiríamos, pautas que te deixariam indignado, nas contas fechadas e reabertas nos bares de esquina, nos blocos de rua, nos palcos, nas redes sociais. Meu amigo, quanta beleza você criou e mediou em sua passagem por esse mundo. Sorte a nossa, que ficamos aqui, transeuntes, com esses fragmentos-memórias da sua história linda e intensa, e das nossas histórias com você.


Chicote, não deu tempo de mandar pelo whatsapp. Mas tá aqui. Receba pelo canal astral essa homenagem como oração, com os limites que a emoção impôs: esse canto é pra você, pra nossa amizade, pro seu legado humano, pro seu legado musical. Por aqui não está fácil: o mundo tá definitivamente virado ao avesso. Estamos respirando fundo entre as ondas pra minimizar a porrada dos caixotes. Não está fácil, mas estou bem, com saúde. Estamos bem, mas morrendo de saudade.


Obrigada por tanto.



ree

*o vídeo de Sem Fronteiras que inicia a carta foi gravado na ocasição das homenagens de 1 mês de falecimento de Chico Oliveira. A composição do músico, arranjador e militante se tornou uma hino de luta nos movimentos que Chico fez parte, assim como um tema amplamente difundido no cenário da música carioca.




 
 
 

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